O
ônibus e o tempo
Osvaldino
Junior
O ônibus já estava quase lotado. Desacostumado com os
solavancos, custei a equilibrar-me na cabine da cobradora que já me olhava
impaciente. Outros preciosos segundos para retirar a carteira do bolso e o pagamento
da tarifa com uma nota de R$-10,00 fizeram de mim seu pior inimigo. A vingança
veio em moedas. Ultrapassada a linha vermelha hostil, ainda cambaleante
encaminhei-me para o fundo do coletivo. Uma senhora olhou-me com certo
ceticismo, como que dizendo: “você não é daqui”. Pensei: “fui descoberto”. Um
jovem casal cochichava baixinho, enquanto afagavam as alianças. Lembrei das
delícias e agruras desse início de vida. Cá comigo desejei-lhes felicidades
sinceras. Na parada seguinte completou a lotação e uma mulher acima do peso buscou
entre os homens alguém que lhe cedesse o lugar. Em vão. No meu tempo (pronto,
delatei minha idade) dificilmente eu ficava sentado, pois era impulsivo levantar
para uma senhora, um idoso, gestante ou simplesmente uma garota. Com o ônibus
cheio perdi um pouco do espaço e até o “cano” do banco onde eu me segurava cedi
para uma jovem que não alcançava o apoio que fica no teto e estava com dificuldades
para se equilibrar. Sorriu levemente agradecendo. A senhora que desde o inicio
desconfiou de mim percebeu meu gesto e aí então foi que me senti um “ET”. Na
parada seguinte mais gente. O motorista apressa a subida dos passageiros e pisa
no acelerador em ponto morto. O “rum, rum” do motor, alertou-me que nada mudou
desde que há anos entrei num ônibus como minha única opção de “mobilidade urbana”.
Corri o olhar pelas pessoas e quase pude reconhecê-las. Na verdade, algumas
coisas mudaram, sim. As pessoas, mais absortas, “conversam” com seus fones de
ouvidos. De vez em quando um celular toca. Mochilas, mochilas e mochilas,
atrapalham quem as carrega e quem precisa passar. Um rapaz, sem pedir licença,
vai abrindo passagem. Por trás sinto sua genitália me esbarrando, ainda que eu
tenha me inclinado e igualmente esbarrado no passageiro que estava sentado à
minha frente. Sinto nojo. Olhei para a mocinha ao meu lado e vi em seu rosto o
mesmo sentimento. Também na outra ao seu lado, e na outra e na outra. À minha
direita uma se fazia de desincomodada. Talvez tenha sido a maneira que
encontrou de lidar com essas humilhações. Lembrei das mulheres “acochadas” do
metrô de São Paulo e concluí que por aqui não é diferente. O calor me fez
esquecer logo esse inconveniente. A viagem prossegue. Alguém conversa em voz
alta ao celular. Duas senhoras se cumprimentam também em voz alta e perguntam
reciprocamente por conhecidos comuns. Um jovem dorme de boca aberta. O calor
continua. Fiquei feliz de não estar de paletó. Penso num banho. Lá fora, automóveis
refrigerados parecem naves espaciais transportando seres de outro planeta. Sinto-me
culpado pelo calor, por estar ocupando espaço de alguém que não conseguiu
entrar na última parada. Sinto culpa até por haver progredido numa cidade em
que a maioria de seus cidadãos não passa de voto e estatística para as
Autoridades. Na parada seguinte, ao descer arrisco uma última olhada para “aquela”
senhora. Seus olhos meio espremidos me dizem: “Você é um deles”.
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